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Aborto, assistolia e feticídio: o que está em jogo na resolução do Conselho Federal de Medicina que trava o atendimento a vítima de estupro

Aborto, assistolia e feticídio: o que está em jogo na resolução do Conselho Federal de Medicina que trava o atendimento a vítima de estupro

Mesmo sendo previsto em lei, muitas mulheres enfrentam dificuldades para fazer o aborto legal, procedimento oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnóstico de anencefalia do feto.

Segundo um levantamento feito pela GloboNews em janeiro, menos de 2% das cidades brasileiras oferecem o serviço de aborto legal em unidades de referência da rede de saúde. Ou seja, em muitos casos, pacientes precisam viajar para conseguir fazer o procedimento. Essa é uma das barreiras que as mulheres encontram no meio do caminho.

Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou, na visão de especialistas ouvidos pelo portal de notícias G1, mais uma barreira para as vítimas de estupro que procuram o aborto legal. A entidade emitiu uma norma proibindo médicos de realizarem a assistolia fetal em “casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro”.

A norma chegou a ser suspensa pela Justiça Federal em Porto Alegre, mas voltou a valer no final de abril, quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região derrubou a liminar anterior.

Na sexta-feira (17), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu a resolução. Ela vale até que a Corte analise a validade da regra. Na decisão, Moraes considerou que há indícios de que a edição da resolução foi além dos limites da legislação. A decisão do ministro vai a referendo em julgamento no plenário virtual a partir do dia 31 de maio.

A assistolia fetal consiste em uma injeção de produtos que induz à parada do batimento do coração do feto antes de ser retirado do útero da mulher. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas.

Se o procedimento é feito antes das 22 semanas, o Ministério da Saúde orienta que o profissional ofereça à mulher a opção de escolha da técnica a ser empregada: o abortamento farmacológico (induzido por medicamentos), procedimentos aspirativos (como a aspiração manual intrauterina) ou dilatação seguida de curetagem.

– A resolução do CFM e o que diz a lei: Na resolução, o CFM argumenta que é um “ato médico que ocasiona o feticídio”.

“A partir das 22ª e 23ª semanas de idade gestacional, os fetos precisam ser identificados como periviáveis, isto é, como detentores do direito à vida, e devem receber assistência conforme sua vulnerabilidade”, diz a norma do CFM.

Segundo o relator Raphael Câmara, o CFM não está contra os casos de abortos previsto em lei, mas após 22 semanas os casos não configurariam mais aborto, mas antecipação de parto. Para ele, a normal é “um ato civilizatório de se impedir de matar um bebê de oito, nove meses”.

No entanto, a resolução do CFM vai contra o que diz a lei brasileira, que não prevê um prazo máximo para interromper a gravidez de forma legal.

Para Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, “o CFM está na contramão da garantia da qualidade no atendimento obstétrico no Brasil”.

Se a norma vai contra o que diz a lei, então ela não tem nenhuma validade? Não é bem assim. Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), explica que, apesar de não vetar a realização do aborto legal, a resolução traz impacto para as vítimas do estupro e para os médicos.

“A resolução não está acima da lei, não tem fundamento jurídico, mas tudo é possível. Gera um estado de insegurança muito grande para a gestante e para o médico”.

Fürst diz que os médicos podem sofrer sanções no âmbito administrativo do Conselho Regional de Medicina por desrespeitar a resolução. “A punição pode ser até de perder o CRM [registro do médico]. E uma vez que se perde, o médico não consegue reaver. Muitos profissionais têm um grande receio disso, inclusive de falar publicamente sobre essa resolução”, esclarece.

O aborto é crime no Brasil, mas existem três situações em que ele é permitido. São os casos de aborto legal: anencefalia fetal, ou seja, má formação do cérebro do feto; gravidez que coloca em risco a vida da gestante; e gravidez que resulta de estupro.

Para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessário apresentar um laudo médico que comprove a situação. Além disso, um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia também pode ser pedido.

Já para os casos de gravidez decorrente de violência sexual – e estupro engloba qualquer situação em que um ato sexual não foi consentido, mesmo que não ocorra agressão -, a mulher não precisa apresentar Boletim de Ocorrência ou algum exame que ateste o crime. Basta o relato da vítima à equipe médica.

Apesar de parecer simples, não é. Mesmo que não seja necessário “comprovar” a violência sexual, muitas mulheres (e meninas) sofrem discriminação nos serviços de saúde na hora de buscar o aborto legal.